sexta-feira, 4 de abril de 2008

lembranças de 'a pele rural'


Comunidade Quilombo Casca, Mostardas. Vinte e seis de Janeiro de 2006.

Em contato com gente da terra, sem pré-conceitos, sem definições, sem saber o que encontrar. Mas com os olhos bem abertos. Às vezes, um aberto e outro não...

Depois de um belo feijão de fogão a lenha, saio para caminhar um pouco. Logo chego a um lugarzinho encantado. Dunas se formaram aos pés dos eucaliptos que o avô de dona Ilza plantara para conter a areia que do mar se espalha pela região. Sem isso, não seria possível a plantação na roça. É uma proteção. São dunas encobertas por folhas e galhos secos que se moldam ao redor dos troncos. Algumas trilhas se formaram. Atalhos para chegar às casas dos vizinhos. Por uma delas chegamos à casa de seu Gaspar, homem bem preto e velho que nos recebeu com uma cara sisuda, mas que depois de umas horas de conversa chegou até a me ensinar algumas benzeduras...
Foi interessante. No princípio, achei que aquela entrevista não fosse render. E por conseqüência, também não as fotos nem o vídeo. O velho estava só, sentado ao lado de uma mesa, fechando seu cigarro de palha. Na mesa havia resquícios de um trabalho de tecelagem. Além de bordados, tricôs, panos e agulhas. Cometi uma gafe: perguntei se ele estava trabalhando naquilo. “Não!” Disse-me com uma cara retorcida... “Quem faz estas coisas é a minha filha”... “elas é que mexem com isso”. Claro, linha e agulha: trabalho de mulher. Os meninos já estavam posicionando o equipamento para a gravação da entrevista, depois das devidas explicações e pedidos de autorização. E começaram. De repente, percebeu-se a presença de uma mulher acordando e levantando da cama que se enxergava no quarto ao fundo. Pensei: Ai! Acordamos a mulher... Hora da cesta... Má hora.
Era Dona Rosinha, filha de seu Gaspar, mulher com pressão alta que mora em Porto Alegre e visita o pai em Mostardas de tempos em tempos. Mal terminamos de explicar-lhe o estávamos fazendo ali, ela girou, foi ao quarto e pegou uma sacola cheia de remédios... “Olhem!” Disse, “São todos esses que tenho que tomar para os meus problemas de pressão” interrompendo a fala do pai e passando em frente à câmera posicionada no meio da sala. Tivemos que ter uma boa desenvoltura para contornar a situação: Não podíamos ajudá-la. Estávamos ali para outra coisa. Colher depoimentos, produzir imagens, trocar, aprender. Mas não podíamos dize-lo de forma direta, pareceria descaso, oportunismo. E só com muita paciência, persistência e a continuação da conversa ela então entendeu o que queríamos: Documentar a figura do seu pai que tinha muito a contar e ensinar.
As rugas de seu Gaspar não nos enganavam e sua memória não lhe pregava peças. Seu Gaspar, o homem mais velho da comunidade, lembrava inúmeras canções dos rituais de Ensaio[1], sabendo também muitas rezas milagrosas. Guto (técnico de som) curtiu as cantigas. Pablo (cinegrafista) se interessou pelas rezas, mas o velho disse-lhe que não o ensinaria. Ensinaria a mim. Por quê? Os meninos insistiram em saber... Seu Gaspar esclareceu: Poderia ensinar a mim, porque desta forma ele manteria o seu poder e ainda absorveria mais força. Um homem que sabe rezas só pode passar seu conhecimento à uma mulher e vice-versa. Desta forma, eu poderia ensinar aos meninos... E quantos mais, aumentando meu poder... E os meninos poderiam ensinar à Cândida, outra fotógrafa, que naquele momento, por acaso, estava na casa da senhora mais velha da comunidade. Rezas de muito proveito. Para proteção e para espantar tormentas.

denise silveira.

[1] Ensaio é um ritual religioso que mistura elementos da cultura Afro trazida pelos escravos com elementos do Catolicismo colonial. Consiste numa romaria durante a noite, entoando cantos e rezas ao som de violas e acordeons.

lembranças de 'a pele rural'


Aldeia Bonita, Salto do Jacuí. Dezessete de fevereiro de 2006.

Ao mundo com olhos de criança para encontrar uma maturidade tão lúdica quanto possível. E em observações fatais, dôo, furto...

Hoje, quando saímos do hotel, diferentemente das outras vezes, coloquei os óculos escuros. Fui a primeira a entrar na camionete e escolhi a janela. Estava com a câmera em mãos e fui mirando o caminho todo: As casas da cidadezinha, o menino de bicicleta, as árvores, as nuvens... Tudo visto com os óculos e com o filtro laranja, mas sem nenhum click. Quando entramos na reserva Indígena comecei a clicar o céu, as árvores secas, as árvores antigas. De repente, avistei uma índia correndo numa estradinha. Ela estava com o peito nu, apenas vestindo uma saia e muitos colares... Pedi para parar o carro. Desci e corri em direção a ela. Estava parada na estrada principal e conversava em Guarani com os moradores da casinha d’ outro lado. Quando me viu, tapou os seios. Parei de correr e fui chegando devagar, como quem não quer espantar um bicho selvagem... Falei em português algumas palavras, achando que ela não iria entender, mas com a intenção de que percebesse que queria um contato... Ela entendeu perfeitamente. E disse-me que não a fotografasse nua. Quis convencê-la, argumentando que estava ali para documentar como viviam. Que se costumava andar nua, era assim que gostaria de fotografá-la. Disse-me, então, que eu deveria pagar. Bloqueei completamente. Não soube o que fazer... Ela pediu-me as havaianas... Eu quis estabelecer um outro acordo, uma troca que só seria possível se ela confiasse em mim. Não consegui. Os índios aprenderam, acostumaram-se a trocar favores. E são desconfiados, têm medo de serem usurpados. Perdi a melhor imagem que poderia ter feito. Se a câmara que carregava em mãos não fosse a fotográfica, outros poderiam ver a cena mais exótica e natural que vi durante este trabalho: A bela índia correndo naturalmente por entre as árvores de peito nu. Consegui uma bela imagem: a índia de seios tapados naturalmente envergonhada.
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denise silveira.