quinta-feira, 29 de maio de 2008

o olhar. silenciosa poesia da luz

Não vês que o olho abraça a beleza do mundo inteiro? (...) é janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento (...) Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? (Leonardo da Vinci)
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Os olhos compõem o modo como estabelecemos contato com as imagens do mundo. Mostra-nos a beleza, a variedade das formas, o brilho e as cores. É um sentido que está muito presente em nossa vida. Fazemos analogia ao olhar e ao ato de enxergar coloquialmente, em nossos modos de expressão e, também usamos da memória baseada nesse sentido para nos lembrarmos de passagens, para reconstruirmos a imagem de um acontecimento ou então para elaborarmos uma idéia.
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O olhar faz parte da maneira como vemos o mundo e nos colocamos diante dele. As palavras são ‘imagens da matéria’. Quando ouvimos o som de uma palavra, ou a lemos, seu significado produz uma imagem mental. A palavra é ícone da matéria. Agrupada a ela existe uma imagem. Talvez, sendo essa uma razão, o estudo das imagens e o estudo das palavras tenham formas de representação tão parecidas: estuda-se a linguagem fotográfica, a sintaxe visual, lê-se uma imagem etc. Nesse sentido, a semiologia faria parte da linguística, e os mecanismos de interpretação de imagens assemelhariam-se aos métodos de análise linguística. Mas, para além da discussão semiológica das palavras ou das imagens, gostaria de especular especialmente sobre a representação da imagem como espelho do universo e, também, do olhar como espelho do homem. Tomar o olhar como um ato de sair de si e trazer o mundo para dentro de si.
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Os olhos são, em muitos casos, encarados como janelas da alma, e falar em janela é considerar a visão como dimensão possibilitadora de uma exposição do eu nas coisas vistas. Os olhos permitiriam uma abertura do nosso interior para enxergar o exterior. Porém, aceito a idéia de que o olhar se origina também nas coisas do mundo, delas depende e, desta forma, se torna espelho. A visão reflete a alma do homem e espelha o mundo em que vive. Janela da alma, espelho do mundo. Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.
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Ver é olhar para receber conhecimento. Etimologicamente, do grego eido: ver, observar, examinar, instruir, informar, conhecer, saber; E do latim, vídeo: ver, olhar, perceber; Olhar é tomar conhecimento. Deste ponto de vista, aquele que vê, sabe. Vê a forma das coisas exteriores, as percebe e constrói uma imagem dentro de si, formando e apurando a consciência do ver. Da mesma maneira, aplica essa consciência nas coisas vistas e se projeta no mundo, lançando-se numa experiência do fazer parte. No entanto, se o ver construtor buscar a semelhança no ato mesmo de ver, entrará na representação e tentará construir signos. Daí surge a necessidade da construção de expressões visuais, que se assemelham às coisas vistas, assim como o espelho, que mostra o aspecto do que nele está refletido. Mas o espelho não é a coisa real. Nem representa com exatidão os mínimos detalhes do real.
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O espelho é uma representação de realidade, a materialização da imagem de uma coisa noutra. O simples fato do “achatamento” que existe na imagem especular é uma questão a ser levada em consideração: o que o espelho reflete é uma aparência do real e, existem alguns espelhos que distorcem essa aparência, como é o caso de espelhos convexos e côncavos, por exemplo, ou de qualquer superfície polida ou muito lisa com capacidade para refletir a luz. Nesse sentido, poderíamos pensar a fotografia como espelho do “real”? A foto pode ser considerada espelho de realidade, se considerarmos também que um espelho não é a expressão fidedigna da verdade ou da realidade, e sim uma imagem, um reflexo, uma aparência ou aspecto de algo que existe ou existiu?
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A fotografia registra, a partir de molduras e filtros criados pela câmera e pelo fotógrafo, uma imagem especular do mundo; e pode ser pensada, contudo, também como espelho do autor que a constrói pelo caminho da identificação; e do observador, que se coloca na imagem a partir de seu repertório e a interpreta dentro de um universo de referências. Para ver o mundo e surpreender-se com ele é preciso propor uma ruptura. Só é conhecimento àquilo que passa pelos sentidos: “existo, logo penso”. O conhecimento do sujeito no mundo, o vínculo com o mundo, só se dá porque se está no mundo e se percebe este mundo. Não é que a fotografia seja a expressão máxima do real, é que a partir da fotografia se tem a possibilidade de flagrar certas circunstâncias do real: uma “tomada” da densidade do vivido. Um realismo que advém da apreensão do fluxo da vida, do acaso e do imprevisto do vivido. O realismo que está na realidade do espaço-tempo. Espaço-câmera em abrir-se para o espaço-tempo de curso da vida. E registrá-lo. Dentro de todas as molduras impostas pelo ato fotográfico, creio que a foto poderia ser encarada como espelho.
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Esse realismo em documentar o factual, flagrando o imprevisto, o acaso, a vida acontecendo na sua densidade existencial e o momento em que a foto consegue realmente flagrar a realidade e a pintura não, por exemplo, é onde acontece uma particularidade importante nas técnicas de representaçãõ do real e modifica a História da Arte, a Estética, criando um novo modo de olhar. A rapidez da tomada fotográfica se impõe, na representação da realidade, ao traço do pintor. O tempo de construção de um retrato pintado se fundamentava na técnica, acuidade e subjetividade do pintor, já a fotografia existe a partir de um disparo rápido e decisivo. Mais instantâneo.
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A fotografia é um registro muito rápido do instante visível. A mão do artista demora horas para conseguir reproduzir a imagem de um momento vivido. O olho é muito mais rápido que a mão. E o registro fotográfico, a criação fotográfica, passa a ter uma maior velocidade de representação e, por sua vez, de comunicação. É claro que, na contemporaneidade, essa discussão toma outros caminhos: além das escolhas do fotógrafo na hora de clicar, compondo o quadro, o momento, a fotometragem, existem também as alternativas da própria câmera, das lentes e dos materiais fotossensíveis. E é interessante pensá-la, sobretudo, como um modo muito novo de criação artística e de registro histórico. Nesse momento, a subjetividade do fotógrafo é encarada como repertório e seu trabalho molda-se e aprimora-se estética e informativamente pelo viés da autoria conjuntamente às influências do contexto social.
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Fotografar torna-se um processo classificatório que privilegia uma cena ou um detalhe, pressupondo uma escolha e uma intenção que se materializa no resultado. O caráter especular, presente no fotográfico serve então de conceito representativo para fotografias com pretensões documentais. Empírica e propositivamente há uma necessidade de “salvar o ser pela aparência”. Há aspiração pelo registro que busque a “eternização” de pessoas, acontecimentos e coisas do mundo. Que espelhe certa realidade.
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Jogando com essas idéias, arrisco colocar o olhar diante de uma construção do olhar: o ser diante da matéria, o olho e a fotografia. Estaríamos, deste modo, diante de uma refração. Um desvio de direção. Estaríamos diante de espelhos paralelos que produziriam uma reflexão cujo número de imagens seria infinita. Raios luminosos atravessando sucessivamente dois meios de densidade diferente. O olhar diante da imagem fotográfica reflete à fruição o aspecto das imagens interiores, assim como absorve o aspecto das imagens exteriores concentradas sobre o fotográfico. A foto seria a materialização da experiência especular do ato de ver e, colocaria diante do espectador a transmissão luminosa do olhar, a partir da inscrição com a luz.
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Em uma analogia bem especulatória, poderíamos tomar a fotografia como um elemento espelhado colocado entre dois espelhos. Um desses espelhos seria o autor (fotógrafo) e o outro, o observador (espectador). A foto constituir-se-ia como a concretização da espelhagem que há no ato de olhar. Esta fotografia tornar-se-ia meio, mediação e transmissão do olhar do fotógrafo ao olhar do espectador. Comunicaria tanto uma mensagem composta na imagem fotográfica como informaria uma parte do mundo que se passou diante da câmera, revelaria o modo de olhar do fotógrafo e também o de interpretar do observador. Teríamos a imagem fotográfica como espelho e o espelho como “instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim” Entre o ser e o visível, os papéis se invertem: inevitavelmente, as coisas nos olham. Através da visão trazemos o universo para dentro de nosso ser.
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A fruição das imagens do mundo vai lapidando e formando um espírito atento à experiência do olhar. Observar obras criativas de um espírito tocado pela imagem do mundo sustenta a dimensão do homem no universo. Acrescenta novos conhecimentos sobre a existência e nos coloca diante das coisas. Às vezes, pode parecer que somos observados, tocados e povoados pelo que nos cerca.

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Existe um poema do Carlos Drummond de Andrade, chamado "Paisagem: como se faz", que é muito interessante e ilustra de alguma maneira o que tento dizer neste texto.


Referências: Chauí, Merleau Ponty, Dubois, Barthes

denise silveira.

7 comentários:

Anônimo disse...

`the strange words rolled through
his mind; rumbled, like talking
thunder; like the drums at the
summer dances, if the drums could
have spoken; like the men singing
the corn song; like old Mitsima
saying magic over his feathers
and his carved sticks and his
bits of bone and stone - kiathla
tsilu silokwe kiai silu tsith

criaturasuicida@yahoo.com

Anônimo disse...

"Bricolei" esse texto a partir de alguns trechos da minha monografia final do curso de comunicação. Ele tava meio 'frankenstein', mas agora acho que tem uma unidade... tá inteligível...

Unknown disse...

tentei buscar o poema do Carlos Drummond de Andrade, chamado "Paisagem: como se faz", sem exito. ME MANDA?????

Anônimo disse...

Paisagem: como se faz

Esta paisagem? Não existe.
Existe espaço vacante
a semear de paisagem
retrospectiva.
A presença da serra, das embaúbas,
das fontes. Que presença?
Tudo é mais tarde
vinte anos depois. Como nos dramas.
Por enquanto o ver não vê.
O ver recolhe fibrilhas de caminho, de horizonte
e nem percebe que as recolhe
para um dia tecer tapeçarias
que são fotografias
de impercebida terra visitada.
A paisagem vai ser. Agora é um branco
a tingir-se de verde, marrom, cinza.
Mas a cor não se prende a superfícies
não modela.
A pedra só é pedra no amadurecer longínquo
e a água desse riacho, não molha o corpo nu.
Molha mais tarde.
A água é um projeto de viver
Abrir porteira. Range. Indiferente.
Uma vaca-silêncio. Nem a olho.
Um dia este silêncio-vaca, este ranger
baterão em mim, perfeitos,
existentes de frente,
de costas, de perfil,
tangibilíssimos. Alguém pergunta ao lado:
O que há com você?
E não há nada
senão o som porteira, a vaca silenciosa.
Paisagens, país
feito de pensamento da paisagem,
na criativa distância espacitempo,
à margem das gravuras, documentos,
quando as coisas existem com violência
mais do que existimos: nos povoam
e nos olham, nos fixam. Contemplados,
submissos, delas somos pasto,
somos a paisagem da paisagem.

Carlos Drummond de Andrade

Anônimo disse...

Muito bonito!
Me encantei de cara com a frase do Da Vinci, sou estudante de pós graduação e gostaria de incluir esta frase dele no meu trabalho, onde está a fonte dela, em que livro você a leu?
Poderia me ajudar?
Obrigada.
Heloisa.
me reponda em: artistalolo@terra.com.br

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

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